Mudanças históricas em Regência

Fragmento de entrevista realizada com pescador(a) artesanal

Entrevistador(a):  Conta como é que você veio parar aqui na comunidade? Seu pai pescava também, como é que foi isso?

Entrevistado(a): Meu pai não era pescador não. Ele era carpinteiro: fazia negócio de casa, fazia canoa. Pescava, assim, pelos brejos também. Mas no rio aqui, rio Doce aqui é outra coisa. Precisa entender mesmo o rio. E o mar não é lagoa, né? Mas ele [o pai] sempre pescava também nos brejos aí de anzol, de rede… Agora a gente aqui já é diferente. Já é rio e mar. Eu pesquei muito, vixe Maria! Hoje que a gente num aguenta mais onda de mar. Mas na época que tava com 25 anos, 30 anos, enfrentei muito mar. Escapei de morrer aí, na boca de barra, barco virava com a gente, com peixe, com rede, com tudo! E a gente era novo, aguentava nadar e dava um jeito, salvava. (…) Aí depois que você pega com a idade aí que não aguenta mais tá pescando. Só os novos mesmo. Ainda pesca pelo rio,  pela praia…, mas em cima do mar mesmo, não aguenta pescar mais não. E a gente vai tocando a vida, né? 

Entrevistador(a): Você pescava, então, no rio e no mar, ou tinha alguma preferência? 

Entrevistado(a): Não. No rio e no mar mesmo. Mas no mar, não é no alto mar não. Aqui na beira da praia mesmo. O pessoal daqui não pesca no alto mar, só na beira da costa. Que lá fora tem que ter barco grande. E aqui os barcos tudo é pequeno. Não é barco grande não. Pescadinha de arrastão. Mas eles vão e voltam logo, não ficam no mar muito tempo não. 

Entrevistado(a): E o cartão (auxílio financeiro da Samarco), tá recebendo?

Entrevistador(a): Não! Já tem mais de ano, que tô labutando aí. Eles já passaram uma vez aqui em casa, tiraram as fotos das minhas tarrafas, as redes, dei meus documentos pra eles, fizeram perguntas. (…) Aí ligaram pra cá, que não tinha passado no perfil. Não passou, fazer o quê?! Mas o meu nome continua lá. (…) E tem é muito daqui da Regência [que] não receberam cartão. (…) Minha mulher mesmo, pescava direto aí beira da praia, já tem a carteira de pescador, ela paga direito. Tem quase vinte anos que ela paga carteira de pescador. E eu pagava carteira de pescador, só que depois que começou a trabalhar de empregado também – porque aqui, sabe como é que é, né? uma hora trabalha de um lado, outra hora trabalha de outro – aí eles falaram pra gente que a gente ou tinha que pescar, ou tinha que trabalhar [empregado formalmente].

(…)

Entrevistador(a): Você tem memória de como que era? 

Entrevistado(a): Da época que eu cheguei aqui… isso aqui era muito pequeno, bem pequenininho! O pessoal aqui não conhecia nem bicicleta. Nem estrada não existia, na época. Lampião à querosene – [pois] aqui não tinha não tinha energia não –, que era o sacrifício. Aqui dava muita quantidade de peixe. Ninguém sabia o que era emprego [formal] não. Veio aparecer emprego aqui agora, esses poucos tempos (…). Era pescar e comer, e pronto. Quem tinha sua rocinha de… mandioca, plantava mandioca, fazia farinha pra comer, e o resto era viver de peixe mesmo!

Entrevistador(a): Você também trabalha com rede? O que mudou na pesca depois da lama da Samarco?

Entrevistado(a): Chega um traz uma rede, aí eu remendo. Remendo, levo… aparece outro. Agora que parou um pouco. [Depois d]o negócio da água aí o pessoal quase não traz. Mas, quando eles estavam pescando direto, o quintal ficava cheio de rede pra remendar. Agora mudou, que o pessoal não tá mais pescando, né? (…) Desistiram de pescar mesmo. Não falam nem em pescar mais! (…) Eu já não pescava mesmo pelas praias mesmo… e agora meu serviço só é esse aqui mesmo: fazer tarrafa [um tipo de rede de pesca circular, de malha fina]. De manhã cedo, se não tiver uma agulha de nylon aqui pra mim trabalhar, fico desfalcado. (…) Aqui eu vendia essas tarrafas direto… agora tem lá, tá tudo  feito! Mudou muito, porque eu fico dois, três meses sem vender uma tarrafa. Aí que eu tenho um menino [filho] que mora lá na Serra, ele tá levando pra vender lá: “papai, eu vou levar, que tem gente lá que gosta de tarrafa, eu vou levar pra vender.” Aí eu boto chumbo, ele pega e leva pra lá. Mas pra vender aqui mesmo, tá mais difícil. (…) Perdi muito! [Por]que a gente pescava também e parou de pescar.

Entrevistador(a):  Então, explica de novo pra gente, você usava, pra pescar, a praia e usava o rio…?

Entrevistado(a): Darci: É. No rio é rede mesmo, e tarrafa, né. E na praia a mesma coisa: tarrafa, rede e linha pra jogar. Pescaria mais era essa. No mar eu parei mais cedo, porque lá, deixa pro pessoal mais novo, que tem destreza pra pescar e tudo. Mas aqui já pega com a idade, aí não tem mais destreza pra pescar. Esse mar aqui é não é fácil não. A gente foi criado aqui sabe o sistema do mar. Tem muitas praias que a gente anda por aí que a gente vê mar manso, mas essa Regência aqui, toda vida foi desse jeito [com mar agitado]. Agora que baixou muito, mas na época que a gente alcançou aqui, entrava navio aqui dentro da barra aí. (…) eles encostavam aqui em cima, aqui no porto. Entrava na barra, vinha, ancorava ali. (…) Aí tinha uma ilha grande aqui fora que o navio vinha e encostava na ilha. Aí eles pegavam madeira de Linhares. (…) Eles tiravam madeira aqui da mata, daqui eles vinham pra serralheria, serravam e encaminhavam pra Vitória, pro Rio… (…) A serralheria pegou fogo aqui. Queimou. Era só uma que tinha, era grandona. Queimou… pegavam madeira em Linhares e o navio chegava na barra e pegava madeira. Tinha uns flutuantes – dois, três flutuantes – numa prancha – iam lá, carregavam [os flutuantes] de madeira… aí vinham, encostavam no navio ali e virava tudo pra dentro [do navio]. Aí o navio carregava e ia embora. Aí, depois, outro [navio] já estava esperando lá fora pra entrar [na barra]. A barra aqui era funda [por isso os navios conseguiam atracar]!  Até meu pai trabalhou pra carregar navio ali. Aí depois é que foi feita aquela ponte de Linhares (…). Aquela ponte lá foi inaugurada em 1950 e… 4, por aí assim. Antes era barco que atravessava, né? Aí surgiu aquela ponte lá, aí pronto, aí acabou aqui. Até o material entrava que ia pra direto de navio aqui não veio mais. E a barra foi bastiando [abaixando o nível da água] também,  que hoje tá num jeito que até esses barquinhos de camarão aí que pesca aí tem caçado lugar pra entrar, porque não tem mais canal, acabou canal. Rio Doce, bastiou também. 

Entrevistador(a): você já trabalhou para alguma empresa daqui?

Entrevistado(a): Eu trabalhei muito na área da Petrobrás, (…) trabalhei numas 3 firmas, em 80. Surgiu petróleo aí, aí fizeram aqueles tanques lá. (…) Navio encostava aí, pegava petróleo direto! Aí depois encanalizaram direto pra Vitória, né? Agora que é canalizado, aí parou. Mas pegou petróleo um bocado de tempo aí, o navio. (…) Chegava um, saía outro. Agora até petróleo diminuiu. 

Entrevistador(a): Como é que foi de mudança essa chegada da Petrobrás trouxe pra comunidade?

Entrevistado(a): Aqui pra dentro, até hoje não vi fazer foi nada. Aqui ainda tem esse pedaço de estrada, porque foi a firma que fez… a firma que vinha trabalhar aqui, trazia as sondas pra furar, aí que fizeram um pedaço de estrada (…). Dali pra cá, o pessoal daqui mesmo que ajeitaram, foram botando terra, até que hoje tem esse pedaço de estrada pra cá. Mas a Petrobrás mesmo, até o asfalto que fizeram lá não foi à frente. Até hoje pararam lá, e o lugar aqui não merecia isso não! (…) [Antes] tudo que é mercadoria entrava pela boca da barra aqui, [por]que não existia estrada, né? (…) O navio entrava aí, descarregava material aqui, mercadoria, daqui seguia pra Linhares e Colatina. (…)  Eu ainda alcancei as lanchas: duas lanchas que nós chamava de Bonita, outra chamava Paraíso. Ela transportava  200 sacos de cacau. Transportava mercadorias de Linhares e Colatina. Era tudo entrado por aqui. Aí depois surgiu as balsas; depois saiu aquela ponte, né? Aí… Regência aqui acabou! Ficou no mesmo. Aí, [em] 79 chegou a energia por aqui, foi chegando gente de fora…  Que era pequeno o lugar mesmo. Agora cresceu muito, mas quando a gente alcançou aqui [em Regência Augusta], tinha umas 300 pessoas, eu acho. Tinha mais que isso não.

(…)

Entrevistador(a): Você tá comendo peixe? Como que tá?

Entrevistado(a): Ah, demora um pouco, mas de vez em quando eu como um peixinho – pessoal aí tudo come peixe –, mas fiquei mais de ano sem comer. Mais de ano! (…) Antes da água vir, o negócio aqui já não tava fácil, depois da água [crime-desastre da Samarco] pra cá, pronto, fiado tudo na venda, isso se não quiser comer feijão puro. Mas tem que comprar. Aí, quer dizer: atrapalhou um pouco o pessoal, né? A gente, nem sempre, ficava dez, quinze dias sem comer uma carne, porque peixe tinha demais. Muitos nem comprava, ganhava peixe. Mas depois que essa água chegou, aí o bicho pegou feio mesmo! Pessoal sentiram um pouco, porque [estavam] acostumado a comer peixe.  Hoje tem que comer carne o mês todo; pra quem tem um ganho melhor, tudo bem, mas quem tem um salarinho que… aí, complica. Mas, agora, de vez em quando eu como um peixinho (…) com medo, se vigiando… 

(…) E eu pescava tanto no rio aí, que eu vou te dizer, hein?! Saía daqui de casa, com essa filharada que eu tenho dez filhos, pegava o peixe, não tinha pra quem vender… Aqui era desse jeito: peixe tinha muito, mas não tinha comprador, era mesmo pra salgar, botar em cima de casa pra comer: robalo, taínha, ticupa, tudo salgado aqui, [por]que geladeira não existia. Salgava e botava em cima da casa e ia comendo. (…) Antes, ninguém vendia peixe não. Trazia uma ruma de peixe, arrastando por aí à fora carregando nas costas (…). Pessoal ia ali na praia, tinha rede, marcava a hora da maré certinho, dava um lança, pegava cento e cinquenta robalos, duzentos robalos. Aí só dava nosso também, pegava mais não (…), só pegava aquela quantidade e vinha embora. Agora, depois que começaram a comprar peixe, os olhos do pessoal começaram a crescer. Tem comprador de peixe aí que vai lá vender peixe, né?… Eu já peguei cação de mil e duzentos quilos [um tubarão de uma tonelada], cação de espada. Já peguei na boca da barra, eu e meus companheiros aí. Aqui dentro do rio. Hoje não tem mais. Já peguei outro no farol, de espada também, uma base de oitocentos quilos, mais ou menos. Tem gente aqui de 40 anos que não conhece um cação de espada. Esses novatos aqui, ninguém conhece. Esses cações de duzentos, trezentos quilos, eles acham que é grande. Eles não conheceram cação grande!

Entrevistador(a): E vinha muita gente comprar tartaruga ou era mais…?

Entrevistado(a): Tartaruga consumia aqui mesmo, ninguém comprava não. E dava em quantidade. Aquela boca de barra ali, quando a maré ia enchendo, a tartaruga boiava, era igual a pedra, boiando. Depois que o IBAMA chegou por aqui, que pegava aquelas tartaruguinha, soltava na praia, ninguém vê tartaruga na boca da barra mais. Que a tartaruga é igual galinha de pinto, ela bota em terra, ela sabe os dias que as tartarugas [filhotes] vai sair e ela vem esperar. Aí as tartaruga sai, ela tá lá rodando, esperando os filhotes sair, ela recebe eles, os filhotinhos, ela toma conta, igual uma galinha de pinto. Não encosta nada pra comer eles, mas os bichinhozinhos, soltando assim de qualquer jeito, um monte de tartaruga, vai lá, solta, os peixes comem! Escapa alguma, né? E sumiu foi muita tartaruga aqui. Não é igual era mais não. Tinha demais! Agora, depois que eles mudaram o lugar, a tartaruga não sabe, já perdeu o lugar, ela não vem esperar mais… vem esperar, mas não encontra nada, vai embora. Aí eles botam na chocadeira lá e, depois vão soltar, né? Muita tartaruga, tudo miudinho, tudo pretinho! Vai embolando um atrás do outro. O mar pega, e joga de perna pra cima, e eles se batem e vão embora. Outros peixes que tá por ali, maior, come elas. Come os filhotes. (…) Anos atrás, tinha muita tartaruga aí, era demais mesmo! agora não tem aquela quantidade mais não. Acabou.  

 

Eles pegaram a tartaruga na linha, sem isca, Só o anzol. Elas passavam com as linhas nas costas, chegava lá, ferrava ela, Aí pegava. De linha: uma linha essa assim grossona. (…) Aí depois que o IBAMA chegou pra aí, acabou tudo. Hoje em dia, pessoal vê uma tartaruga ali na praia, eles nem ligam mais(…), mas de primeira… tem quem ficava noite toda rodando na praia aí, pra lá e pra cá, caçando tartaruga . Às vezes matava, uma, duas… na época que eles estavam desovando… Agora ninguém faz isso mais não. Acabou.